Depoimentos – Textos

O Cabaré
No período compreendido entre as duas grandes guerras mundiais floresce na Europa um gênero teatral que se exerce fora dos teatros tradicionais ou oficiais. Geralmente em casas noturnas. Talvez daí a denominação que viria a receber de “Cabaré”. No Brasil a palavra serviu para designar toda e qualquer atividade noturna que tivesse a ver com a boemia, divertimento e entretenimento sexual. Chegou um momento em que cabaré e prostíbulo significavam quase que a mesma coisa.
Seu significado e função teatral chegam até nós, jovens, diretores do teatro brasileiro, por meio de Bertolt Brecht, sua obra, sua teoria e prática a respeito do ator e da interpretação.
Dizia-se que Brecht teria sido muito influenciados por Karl Valentin, ator e autor de espetáculos em casas noturnas no período entre guerras alemão, época de ascensão do pensamento e de sentimentos nazistas, antissocialistas.
A crônica desses importantes momentos de transformação social não chegava aos palcos diretamente, mas no anonimato das casas de show, sem compromisso com a tradição teatral clássica alemã.
Por isso, eu acho, floresceu com liberdade e agudo sentido crítico e humano!! Muito humor!! Cáustico, político, entremeado de canções e pequenas cenas completas nelas mesmas. Características que vamos encontrar quase intactas no teatro político, épico, de Brecht. Narrativo. E também na sua conceituação de um ator para esse tipo de representação, diferente do teatro alemão da época.
Há quem diga que Brecht desenvolveu suas práticas e teorias teatrais para compensar a incapacidade do teatro alemão de fazer comédia, de fazer rir, de fazer pensar.
O resto é história.
Todos nós sabemos, mesmo sem saber, que o teatro nunca mais foi o mesmo depois de Bertolt Brecht. Seu “distanciamento crítico” contaminou a representação e a encenação mesmo de quem nunca ouviu falar dele.
Daí a importância de Karl Valentin e seu Teatro/Cabaré para a história de nossa contemporaneidade teatral!
Na década de 60, o teatro brasileiro depois do TBC, e com o advento do Teatro de Arena e dos diretores brasileiros, começa a trazer para a cena o Brasil e seus problemas. Momento importante, transformador e altamente mobilizador de vida cultural. A inquietação política do teatro consegue ultrapassar o Golpe de 64 e se arrasta até 1968 com o decreto do AI-5 e o recrudescimento da censura.
Toda a nossa capacidade crítica foi então se esvanecendo dentro do clima de intensa repressão em que ficamos submersos durante os anos sombrios da ditadura.
A inquietação acabaria por desaparecer quase totalmente dos palcos e dos textos teatrais. Brecht e Shakespeare me mantiveram vivo nesse período. Ricardo III, o poder sem saber – nossa realidade política... E Galileu Galilei, o saber sem poder, a realidade de nossa vida cultural.
Uma certa pasmaceira!!
Um certo marasmo!!
Nessa situação e nesse clima foi que me encontrei com o muito jovem, quase criança, Felipe Pinheiro. Ele me escolheu como “mestre”, talvez, e eu o adotei como “discípulo”, talvez. Em dupla com Pedro Cardoso, também absolutamente jovem, Felipe se apresentava com textos de humor cáustico acentuado, em pequenos teatros do Rio de Janeiro.
Eu via ali então a possibilidade de uma linguagem inquietante para a apática sociedade brasileira. Impossível não pensar em Karl Valentin na Alemanha nazista e, é claro, em Bertolt Brecht.
Era o novo “cabaré”. Estávamos em condições de produzir um tipo de espetáculo de humor e reflexão que talvez pudesse modificar a nossa lamentável indigência político-social teatral.
Associei-me intensamente a eles, Pedro e Felipe, e procurei fortalecer seu trabalho e seus caminhos.
Um dia Fernanda Montenegro me perguntou:
– O que você quer fazer com esses meninos?
– Ajudá-los a realizar seus sonhos.
Acho que ela entendeu. Não me perguntou mais nada.
O material escrito que os senhores vão agora poder consultar é o trabalho dramatúrgico individual do Felipe Pinheiro: são duas peças de teatro (uma delas inédita), uma série para TV e alguns esquetes escritos também para a televisão. Essa dramaturgia faz parte dos intensos anos de trabalho à margem do teatro oficial. Por sua diferença em relação a este, na época foi pejorativamente chamado de “Besteirol”. Eu me orgulhava de pertencer ao “Besteirol”, diante do conformismo do teatro oficial brasileiro. O TBC – Teatro Brasileiro Clássico!! E diante da novidade dessa dramaturgia!!!
Felipe Pinheiro cometeu a inconsequência de morrer muito cedo. Esperamos trazê-lo de novo à vida com esta edição de sua obra individual.
Viva Felipe!!!
Amir Haddad - Diretor

