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Depoimentos – Textos

Felipe foi meu maior amigo

Não sei se eu fui a maior amiga dele, mas ele foi o meu maior amigo.

No dia em que Felipe partiu, me tornei adulta. Minha juventude terminava ali, com ele, que nesse ano de 2020 completaria incríveis 60 anos. Felipe foi o espírito do meu tempo.

 

Nos anos 1980, quando comecei como atriz, os palcos cariocas fervilham com o surgimento de atores, autores e diretores influenciados pelo teatro confessional do Asdrúbal Trouxe o Trombone.

Nos estertores da ditadura militar, o Asdrúbal nos ensinou uma terceira via, para além da divisão entre esquerda e direita, e distante da tradição teatral. Cooperativas formadas por uma molecada audaz enfrentaram não só Brecht, Shakespeare, Oswald e Wedekind, como se aventuraram em criações coletivas,

calcadas no humor e no improviso.

O teatro experimental nascido nesse período também sofreria forte influência dos Dzi Croquetes, o extraordinário grupo de bailarinos atores liderado por Lenny Dale. Era uma revolução mendiga, desejosa de sepultar o bode dos anos de chumbo e dançar para o corpo ficar odara. Parte desse movimento cultural, guiado pela liberdade e pela alegria, receberia a alcunha de Besteirol.

O Pessoal do Despertar, de Paulo Reis, Maria Padilha, Zezé Polessa, Miguel Falabella e Daniel Dantas; o Pessoal do Cabaré, de Gilda Gilhon, Buza Ferraz e Ariel Coelho; o Manhas e Manias, de Débora Bloch, Andréa Beltrão, Chico Diaz, Pedro Cardoso, Claudio Baltar, Mário Dias, Márcio Trigo e José Lavigne; a companhia de dança Coringa, de Graciela Figueroa, berço de Débora Colker; além dos escritores Mauro Rasi e Vicente Pereira; da Turma do Casseta e Planeta Diário; da Intrépida Trupe; da Blitz e do Circo Voador, todos surgiram juntos, em meio à efervescência adolescente do início dos anos 1980.

E, de todos esses grupos, nenhum causaria maior espanto do que aquele formado pela dupla de vira-latas Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro. Com direção musical de Tim Rescala e o auxílio luxuoso de Amir Haddad, Pedro e Felipe estrearam sua colaboração com o espetáculo Bar Doce Bar, tornando-se ídolos e referência da minha geração.

Os dois se conheceram nos bastidores de Serafim Ponte Grande, primeira e última superprodução do Pessoal do Cabaré. A prefeitura do Rio de Janeiro, reconhecendo o valor das jovens cooperativas, concederia à trupe uma longa temporada no nobilíssimo Teatro Villa Lobos, bem como uma verba de produção jamais destinada a nenhum grupo experimental.

A montagem de Serafim Ponte Grande, segundo o crítico Macksen Luiz, não atingiria a irreverência e o espírito modernista de Oswald de Andrade, mas serviria para unir Felipe e Pedro, atores coadjuvantes da empreitada.

O fracasso de bilheteria, me contou Felipe, forçou o elenco a definir o quórum mínimo de espectadores necessário para fazer valer a sessão. Um dia, estavam todos em cena, simulando o mar, quando um dos atores percebeu que não havia ninguém na plateia. Desolado, o elenco rumou para a coxia, quando um

deles gritou: “Volta gente! Tem dois sujeitos no balcão!”. A partir dali, combinou-se um quórum mínimo para dar início ao primeiro ato, e uma nova avaliação no intervalo para decidir se gastariam sua energia no segundo.

A dura experiência os aproximou. No camarim de Serafim, rindo da própria miséria, Pedro e Felipe fundaram sua parceria.

Bar Doce Bar estreou no horário maldito da meia-noite, regado a vodca e vinho branco, oferecidos no foyer do pequeno Teatro Candido Mendes. “Este é um espetáculo que só se aguenta de cara cheia”, dizia Felipe, dando boas-vindas ao público. “A bebida ajuda muito o nosso trabalho”, completava Pedro, num dueto

hipnótico, versão tropical de Rosencrantz and Guildenstern.

O que se via a seguir era uma sequência de esquetes sobre seres solitários, infelizes, perdidos e ignorados, porém dotados de um sentido grandioso de falência. O espetáculo era um misto de irreverência ginasiana com amargura de meia-idade, traços de caráter que o próprio Felipe carregava consigo.

“O Pedro jamais terá uma escada como eu”, me disse ele uma vez, ciente da exuberância do parceiro. Pedro assumia os quadros mais longos e requintados da peça, como o do striptease do homem só que chega em casa depois do trabalho. Felipe protagonizava cenas curtas, tristes e hilariantes, tão concisas

quanto uma charge.

Pedro também me falaria da admiração pela audácia do companheiro, capaz de levar ao palco situações corriqueiras e desenvolvê-las até o limite da tragédia humana. O homem incapaz de ser atendido no balcão de um bar lotado, no maravilhoso “Moço, me Dá um Suco”; a filha que implora à mãe zelosa que alivie o rigor do penteado no “Mãe, Solta o Lacinho”; e o estudante preso na porta do elevador da faculdade no “Aperta

o Botão Aí”.

Essa linha tênue entre o raso e o profundo, o risível e o sério, entre respeito e abuso, covardia e coragem, ambição e fracasso, faria parte do repertório da dupla dentro e fora do palco.

 

Rebeldes, ambos apresentaram um Prêmio Shell de teatro, dedicando grande parte da noite ao sarro explícito da crítica. A performance revoltou a repórter responsável pela cobertura do evento para o Jornal do Brasil, Márcia Cezimbra, que os desancou no Caderno B do dia seguinte. Como resposta, Pedro e Felipe empenharam o que não tinham para pagar um anúncio caríssimo, do mesmo tamanho da matéria, no mesmo JB, estampando seus rostos sorridentes sob uma faixa larga onde se lia: “Obrigado, Marcia Cezimbra, pela excelente resenha!”.

Numa tournée em Lisboa, tendo que escolher entre comer ou pegar o ônibus, o par suicida abriu o espetáculo dizendo que estava ali para pegar de volta todo o ouro que Portugal roubara do Brasil. Fez-se um silêncio sepulcral na plateia.

A inteligência, a malícia e a tragicomicidade temperariam as criações de Pedro e Felipe ao longo de onze anos. A Porta, de 1983, viria na sequência de Bar Doce Bar; seguido de C de Canastra, em 1985; A Besta, em 1987; Nada, em 1988; e A Macaca, em 1990. Vez ou outra, a dupla voltava sua atenção para o próprio ofício. Os dois fizeram uma paródia impagável da Petra Von Kant de Fernanda Montenegro durante uma temporada

em que a lady e os vagabundos dividiram os horários nobre e alternativo do Teatro dos 4. E como esquecer de Soltem os Cachorros!?, tour de force regido por Amir Haddad em que ambos repetiam a mesma cena até a exaustão, variando apenas o estilo.

Nas cenas em que retratavam casais, Pedro assumia sempre o papel da mulher e Felipe o do homem. A simbiose era tamanha, que uma fã os esperou na saída do Candido Mendes para dizer da admiração pelo fato de eles assumirem publicamente sua relação amorosa. Sem querer decepcioná-la, ambos agradeceram, sem esclarecer que não eram casados.

 

Felipe não era um homem bonito. O corpo magro e peludo equilibrava uma cabeça grande, coroada pela farta cabeleira. A boca era larga, o nariz pequeno. Para seduzir, ele se valia de um humor autodepreciativo, ciente de que o mundo fora moldado para favorecer os fortes.

Jamais vou esquecer do dia em que, na praia da Barra da Tijuca, Felipe se livrou da pochete que sempre trazia amarrada ao quadril e, antes de cair na água, me alertou, sério: “Nanda, quando eu sair do mar, não se assuste, é que eu tenho um clitóris muito avantajado”. Em outra ocasião, no seu apartamento em Botafogo, com a sala repleta de amigas parecidas comigo, moças que o veneravam, Felipe me confessou no quarto: “Já tentei com todas e todas me recusaram”.

Ao cultíssimo Felipe, coube uma existência gauche. Ele possuía o ardil dos perdedores, a argúcia dos fracos e a graça dos preteridos. Seu encanto imenso e a grandeza pueril de seus escritos são fruto da consciência de que a vida nunca seria fácil.

Eu amava o Felipe, muito. E soube de sua partida em Nova York. Foi como se um raio me tivesse atravessado ao meio. Eu perdia mais do que um amigo, era um pedaço intraduzível de mim que faltava, e para sempre faltaria.

Quando retornei ao Rio, pela primeira vez no Rio sem sua companhia, ao entrar em casa, um passarinho saiu da floresta e pousou no meu ombro. Tive certeza de que era o Felipe. Uma certeza irracional e persistente. A avezinha me rondou por mais de hora, almoçou comigo na mesa, me assistiu desfazer as malas, deitou comigo na cama, a ponto de eu perguntar: “Felipe, é você?”. Cansada da viagem, acabei adormecendo. Quando acordei, ele havia ido embora. Nada me tira da cabeça que aquele pássaro era o meu amigo se despedindo de mim.

Fiz parte d’O Judeu, biografia cinematográfica estrelada por Felipe e dirigida por Jom Tob Azulay, sobre o célebre dramaturgo do século 18, Antônio José da Silva, nascido no Rio de Janeiro e morto na fogueira pela Inquisição portuguesa. A produção enfrentaria problemas de financiamento gravíssimos, com filmagens interrompidas mais de uma vez, concluídas apenas sete anos depois de iniciadas, sem a presença de Dina Sfat e Felipe Pinheiro.

Em 1995, quando retornei a Lisboa para encerrar O Judeu, mais uma vez Felipe se fez presente. Sonhei com ele voando, de um prédio para outro, numa cidade que parecia Nova York. No mesmo dia, na locação escolhida para a tomada, numa árvore que nos servia de cenário, duas letras escavadas no tronco chamaram

a minha atenção: FP.

Eu não acredito em mistérios, eles não costumam me acometer. Foram milagres que só existiram graças à ligação que tive e tenho com ele.

Que esses escritos aqui publicados tragam a quem não o conheceu, e aos que sentem falta dele, a delícia de descobri-lo e revisitá-lo.

Um beijo, Felipe.

Fernanda Torres

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